quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Podemos partir desse mundo antes da hora?



A hora, o momento, o instante da morte suscita ainda muita incompreensão, mesmo entre espíritas. Normalmente, o delicado assunto vem à baila quando ocorrem fatos inesperados e chocantes, com elevado número de óbitos e extrema comoção social. Os que entendem não haver momento prefixado para a morte até se louvam em textos de O Livro dos Espíritos, mas esquecidos de que estes sempre estão subordinados a um todo, cuja lógica granítica não pode ser apanhada no calor de uma preconcepção que se quer confirmar a todo custo.

O n. 746 da Obra-base registrou que o assassinato é grande crime aos olhos de Deus, pois “aquele que tira a vida ao seu semelhante corta o fio de uma existência de expiação ou de missão”, aduzindo a isto que “aí é que está o mal”… A intenção foi desqualificar o crime, valorizando a vida em seus propósitos mais altos, e não propriamente afirmar o absurdo de que seria possível uma pessoa deixar de cumprir sua missão, ou de expiar suas faltas, se uma terceira tentasse e conseguisse matá-la. Houve imprecisão na retórica, mas não serve de exemplo aos mais versados na Filosofia Espírita, preconizadora da bondade e da justiça de Deus acima de tudo.

O que não soa bem é que se negue a Providência e se aclame o acaso em nome do Espiritismo, tanto mais lamentavelmente num momento decisivo como o da morte. Segundo Allan Kardec: “O Livro dos Espíritos não é um tratado completo do Espiritismo; apenas apresenta as bases e os pontos fundamentais que se devem desenvolver sucessivamente pelo estudo e pela observação.” (Revista Espírita. Julho de 1866. Perguntas e problemas.) Todavia, não é o caso de recorrer a esta importante advertência do mestre. O próprio Livro dos Espíritos bem estabelece que “fatal, no verdadeiro sentido da palavra, só o instante da morte o é” (853).

Tal instrução, contudo, não prega o óbvio, o fato biológico de que viver implica necessariamente morrer. O que proclama é que o instante da desencarnação é predeterminado, e não a banalidade de que morrer é inevitável aos mortais. Até porque ao núcleo do sujeito (instante) é que diretamente se dirige o seu predicativo (fatal), com o perdão deste brevíssimo lembrete de sintaxe da nossa Língua. O Livro dos Espíritos revela, portanto, a verdade transcendente de que “qualquer que seja o perigo que nos ameace, se a hora da morte ainda não chegou, não morreremos”, acrescendo a isto que “Deus sabe de antemão de que gênero será a morte do homem e, muitas vezes, seu espírito também o sabe, por lhe ter sido isso revelado, quando escolheu tal ou qual existência”. (853-a.)

Nesta mesma linha doutrinária, o n. 199 da Obra-base já estabelecera que a morte de uma criança “pode representar, para o espírito que a animava, o complemento de existência precedentemente interrompida antes do momento em que devera terminar”. Os Instrutores da Codificação aludem a um processo deflagrado pelo próprio espírito em vida passada, e que teve por efeito abreviar-lhe aquela estada física, a qual findou antes do tempo que lhe fora prefixado, motivando a necessidade de uma vida futura mais breve, a interromper-se na infância. Ou será que a alguém acode o pensamento de que tal espírito deve retornar numa nova e mais curta existência porque um terceiro lhe ceifou a vida pregressa antes do momento em que devia terminar? O primeiro padeceria inocentemente o resultado de falta cometida contra si por outrem…

Fora zombar da Providência! O que a Doutrina Espírita ensina com precisão é que se for destino de alguém não perecer, ou perecer de tal maneira, assim será; e mesmo a interferência dos espíritos poderá verificar-se para tanto. É o que se lê no Livro que lhes traz o nome (ns. 526, 527 e 528). No “Resumo teórico do móvel das ações humanas”, síntese dos ensinos de O Livro dos Espíritos acerca da liberdade e da fatalidade, Kardec é muito claro: “No que concerne à morte é que o homem se acha submetido, em absoluto, à inexorável lei da fatalidade, por isso que não pode escapar à sentença que lhe marca o termo da existência, nem ao gênero de morte que haja de cortar a esta o fio” (n. 872).

Assim, no caso do assassinato em foco no n. 746 da Obra-base, a existência de expiação, ou de missão, foi interrompida dessa forma porque Deus o permitiu, em função de haver chegado a hora, o instante, o momento de seu fim. Todavia, não se conclua daí que haja redução de responsabilidade do assassino. Cometeu voluntariamente um crime, dívida que haverá de saldar a seu tempo. Exceto mediante práticas suicidas, não é possível partir deste mundo antes da hora.

Para uns, será o instante e o gênero da morte uma expiação; para outros, mera prova. Conforme o axioma kardeciano: “[...] a expiação serve sempre de prova, mas nem sempre a prova é uma expiação”. (O Ev. seg. o Esp., cap. V, n. 9.) A morte, porém, acontecerá no momento preciso, individual ou coletivamente; sendo certo que, de modo imprevisto, ninguém desencarnará vítima de falta alheia, o que, entretanto, não supõe a predeterminação do ato equívoco, mas a infalibilidade da Divina Lei. O Juiz, neste caso, lavra em termos irrepreensíveis o seu veredictum, porquanto, “para Deus, o passado e o futuro são o presente”. (Kardec. A Gênese. Frontispício.)

Aos infratores, as dívidas; às “vítimas”, a liberdade, o progresso espiritual, quer por simples prova, quer por expiação.

Por Dr. Sérgio Felipe
Fonte: http://www.ame-rio.org.br/index.php?option=com_content&task=view&id=31&Itemid=17

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